O álbum foi idealizado, escrito, composto, arranjado e quase que inteiramente gravado entre julho de 2019 e fevereiro de 2020, antes da pandemia do COVID-19 se alastrar pelo mundo, assim como a primeira versão desse texto, que não será publicada, ao menos por enquanto. Até então, pensávamos que toda a aventura distópica na qual estávamos imersos no Brasil, desde as legítimas manifestações de rua de junho de 2013 até as surreais eleições de 2018, provinham do nosso ódio, nosso rancor em relação aos sucessivos fracassos ético-morais dos governos democráticos após a Constituição Federal de 1988, proporcionais às expectativas criadas por eles.
Acreditávamos que esses sentimentos ultrajantes pudessem se dissipar frente a argumentos emocionais e racionais, em prol da preservação dos melhores valores humanos, presentes na cultura do nosso povo, onde aportaríamos de forma segura numa ágora digital verdadeiramente propositiva. Entretanto, desde à chegada do vírus ao Brasil, devidamente recepcionado por festa de digital influencers, temos presenciado um show de horrores sem precedentes: a era da pós-verdade materializada na sua face mais sombria. Frases e ações que ressoarão por séculos nos livros de história e que simbolizarão um estágio nunca imaginado de degradação social.
Nossa geração ficará marcada pelo sacrifício do anonimato nas redes sociais, mas não para obter 15 segundos de fama. Nós estamos cometendo incontáveis suicídios virtuais; mitigando a superficial e mundialmente proclamada imagem de povo pacífico e multicultural que possuíamos até pouco tempo. Um país gigantesco e com riquezas incomensuráveis, cujo comportamento dos que aqui habitam é visto com incredulidade pela comunidade internacional, tamanha a falta de noção e imaturidade para lidar com uma infinidade de assuntos, sérios a exemplo do meio ambiente, ou banais como o culto a celebridades.
Em menos de uma década, reinventamos a realidade; ideologizamos a ciência e relativizamos o direito de viver. Polarizamos absurdos e traficamos devaneios. Ficamos reclusos no plano da negação: negamos o diferente; negamos a nós mesmos. Presos a uma atitude antissocial e sem perspectiva de um futuro, qualquer que fosse ele. Acorrentados ao vórtice da nossa guerra de egos, parabenizada pelo nosso sarcasmo autodestrutivo: uma competição aleatória e desregrada que, ao final, não nos levará a resultado algum.
Não percebemos que a existência do humano, do cultural, é linguisticamente multilateral. Seu significado só é identificável no inter-relacionamento de pessoas quando o fluxo energético se dá no campo da tolerância e da aceitação. Do indivíduo para o social; do capitalismo para o comunismo; da igualdade para a liberdade; do preto para o branco; do hetero para o homo, trans, bi; do etc. para o etc. e tudo isso vice-versa. A vida é, por essência, definida, dimensionada e qualificada pelo grau de capacidade das pessoas dialogarem, trocarem experiências e conhecimentos, sem se aniquilarem mutuamente, em benefício do equilíbrio das diversas energias e ideias que orientam nosso comportamento.
E para aqueles que insistem em pregar o ódio e pautar suas ações nesse sentimento; pensam que debates existem para serem vencidos a qualquer preço e creem na vitória pela destruição do seu oponente ideológico, só nos resta informar que serão os primeiros a sucumbir. A mutilação do seu suposto inimigo nada mais é do que a pior forma de automutilação: em doses homeopáticas, com requintes de uma crueldade terrivelmente fatalista e universal. Na essência, essas pessoas não vivem; morrem todos os dias, um dia de cada vez, num ciclo de infindável, misto de cinismo latente e covardia incomensurável.
Mas para aqueles que embarcaram de forma aleatória nesse trem descarrilhado; na carona de interesses escusos e alheios, sem um destino traçado, sugerimos que não continuem afundando no pântano movediço dos memes e das fake news. Nunca é tarde para saltar na próxima estação da realidade. Ela sempre nos avizinha, dando um jeito de surgir em frente aos nossos incrédulos olhos, nos recebendo de portas abertas. Caminhem com aqueles que hoje lutam contra essa corrente de ódio, porque, para quem sofre com as difamações propagadas, desistir não é, nem nunca será, uma opção, como já nos provou o genial Caetano Veloso.
Contudo, não somos ingênuos ao ponto de acreditarmos que se resume a uma luta de mocinhos contra bandidos; do bem contra o mal. O maior erro que podemos cometer nesse momento delicado da história brasileira é menosprezar a complexidade desse fenômeno que nos contaminou, atribuindo a responsabilidade única e exclusiva aos políticos de uma forma geral; ao fascismo que estaria escondido numa camada da população e que agora teria se tornado evidente com o surgimento do fenômeno do “bolsonarismo”; ou ao “esquerdismo” que teria a intenção de implantar o comunismo e a corrupção no nosso país. Esses reducionismos não auxiliam em nada a superação da nossa crise atual; ao contrário, alimentam esse espectro de mentiras que inundou nosso seio social.
Lançando um olhar mais abrangente sobre os eventos recentes da história do Brasil, acreditamos que essa crise não se resume a um embate entre “fascistas” e “comunistas”; “conservadores” e “progressistas” ou “esquerdistas” e “direitistas”. Esses adjetivos servem apenas rótulos ideológicos com caráter meramente simbólico para efeito de autoafirmação e posicionamento em meio à polarização que vivenciamos no nosso dia-dia.
Talvez, não consigamos enxergar que estamos passando por uma fase de transição do nosso sistema ético-moral, por estarmos imersos ao processo de sucessão contínua dos fatos históricos. Entretanto, mesmo com toda a carga de surrealidade dos acontecimentos, é certo que estamos num processo irreversível de mutação da nossa ordem jurídico-constitucional.
Nosso trabalho, que se inicia com o álbum Epopeia Pau-brasil, consiste na tentativa de alavancar ideias e premissas que contribuam para o debate pré-constituinte e evitem que este fique aprisionado pelos mesmos oportunistas de plantão que querem impor o seu padrão ético-moral religioso à toda a população pela força dar armas e do ódio. Sabemos que em algum momento teremos uma nova Constituição, principalmente depois da aprovação da Emenda Constitucional 105 que, provavelmente, será compreendida simbolicamente como o ocaso final da Carta de 1988, mesmo sabendo que esta sangria já vem se arrastando há mais de uma década. Todavia, não podemos admitir que essa necessária transição seja utilizada para justificar a diminuição de direitos como pregam uns, ou simplesmente pelo fato de o Chile ter aprovado a convocação de uma nova Assembleia Constituinte, como bradam outros. A mudança estrutural que se impõe ao nosso sistema constitucional precisará ter como foco a racionalização da máquina pública para que os impactos econômicos, gerados pela quarta revolução industrial que está em curso, não acabem por esgarçar completamente o nosso já combalido sistema social.
Precisamos ter plena consciência de que toda a mudança social traduz uma mudança cultural que parte do indivíduo para a sociedade e que esse transmutação ético-normativa seja reflexo desse estágio de autoconsciência coletiva. Então, propomos que mudemos a nossa mente; olhemos para dentro da nossa alma; encontremos toda a aflição no desespero de quem não compactua como esse ocaso sociocultural e transformemos a nossa inércia em propostas, em objetivos, em valores, em princípios, em vida. E, no encontro afável com a vida, vençamos o medo com o desapego ao nosso antiético complexo de inferioridade.
Sim, a solução para resolvermos nossos problemas sociais, e para enfrentarmos esse gigantesco desafio de construir uma nova ordem constitucional, pertence ao domínio da ética; não da meia ética, porque ela simplesmente não existe. Da ética por completo; da ética do respeito; da ética materializada na seriedade das ações e não das piadinhas abobalhadas pseudocômicas sem limites ou propósito que inundam a nossa atual esfera pública. A postura ética do indivíduo para com o outro, e, portanto, para consigo mesmo. Essa é, em última instância, a expressão da mais singela e conhecida forma de amor experimentada pela humanidade, como bem defende Humberto Maturana em sua teoria da cognição de Santiago, inesgotável fonte de inspiração para a composição desse álbum.
Como diria o saudoso professor Arx Tourinho, a quem dedicamos essa obra: “Ética não pode ser a bandeira de quem não as possui; ética não pode ser oportunismo político, não pode ser instrumento de defesa de interesses pessoais ou manifestação individual de preservação de seu próprio poder. A ética é imparcial, na medida em que, na defesa de valores e princípios, não vê grupos, não vê partidos, não vê governo, não vê oposição. Enxerga, com olhos de ver, a realidade conjuntural”
Epopeia Pau-brasil é uma confissão da nossa culpa pessoal e intransferível de sermos parte dos nossos fracassos civilizatórios. É também o desejo de expressar ideias para que possamos, juntos, sair desse estado letárgico de eterna crise público-social. Esperamos que pelas letras e cifras das nossas músicas, pela narrativa dos nossos filmes e pelo conteúdo dos nossos livros possamos dar nossa contribuição para tornar esse país um lugar que orgulhe a todos os brasileiros, da forma como sempre sonhamos.
Sigamos em frente, esperando que em 2022 tenhamos uma nova oportunidade de nos reconectar enquanto povo brasileiro, para que, após a passagem de bastão para um governo não-pautado no ódio ao ser humano e ao desprezo à nossa cultura, possamos começar a expor, com altivez de espírito, todas os nossos pensamentos e sugestões, a fim de acalentarmos a nossa alma em prol de um bem maior, que será a necessidade de construção de novos padrões de convivência social. Até lá, contemplemos a impermanência da desvirtude, vendo-a gradativamente se desintegrar no alto da sua convulsão moral, que fatalmente transformará os detratores da sanidade em artífices da sua própria autodestruição.
Acorde Alternativo.